Como foram estes Dez dias "sem falar" ?

Foi há dez dias atrás, no dia 16 de Setembro de 2017, pelas 9h30 que tomei a decisão de não falar por 10 dias.
Já tinha estado 10 dias em retiro com silêncio guiado.
E se num momento surgiu-me a ideia de 10 dias sem falar e procurar à mesma viver o dia-a-dia “normalmente”, poucos momentos depois estava a executá-la.

Durante estes dez dias fui a uma festa de aniversário, a um concerto com família, desempenhei funções de juiz social, tive uma reunião de trabalho, visitei dois centros comerciais para trocar uma peça de roupa de bébé, comi cinco refeições fora de casa, recusei telefonemas, troquei sms, andei nos “mensageiros” online, enviei e-mails, cumprimentei pessoas com que me cruzava.
Estive com amigos, família e com pessoas que nunca tinha visto, além de mim mesmo.

No início deste 11º dia, ao falar, sinto e percepciono a voz e o ato de falar de forma diferente.

Alguns de vós aperceberam-se, outros não. Referi a algumas pessoas com quem me cruzei que tinha a ideia de partilhar sobre a experiência. Este é o ínicio de tal partilha. Gostava também de por aqui ler respostas de pessoas que se cruzaram comigo durante este tempo (fisicamente ou não), no sentido de partilharem o que sentiram, pensaram, viram, com a intenção de o fazer de forma de perceber e dar a conhecer o possível impacto de uma experiẽncia assim.

De onde surgiu esta ideia
Controlando-me para tentar não contar a história do Universo que tenho presente em mim (pois cada vez penso mais que as ideias andam por aí, quais ondas eletromagnéticas, e que tentar perceber de onde vêm é tão difícil como perceber a Origem de tudo), diria que a ideia foi influenciada por:

  • A minha história de vida pessoal e em particular, a minha experiência dos retiros de 10 dias do Vipassana (o número 10 fui buscá-lo aí),
  • O meu lado de auto-análise do que digo e penso: partiu de uma auto-análise numa conversa matinal em casa, em que me apanhei a qualificar o que me estavam a dizer e a avaliar isso mesmo,
  • A minha vontade de suspender mais e mais o julgamento para promover o diálogo gerador de aprendizagem e a compaixão (esta aprendi com os Diálogos de Bohm, que conheci pelo Marco de Abreu, nos contexto da João Sem Medo e do seu Recreio de Liderança), de forma a viabilizar a fluidez e harmonia em casa.

Pensando em objetivos identifico:

  • Desenvolver a assertividade (dizer o que é preciso, quando é preciso, da forma mais eficaz)
  • Desenvolver a presença mental
  • Desenvolver a capacidade de suspensão do julgamento
  • Desenvolver uma maior percepção sobre linguagem corporal (minha e dos outros)
  • Ligar-me mais aos meus sentimentos e emoções

Momentos significativos em cada dia

1º dia (sábado) - Início “sem pedir autorização”, e uma festa de aniversário
2º dia (domingo) - ida a um “concerto para bébés” e almoço e tarde com família
3º dia (segunda) - Funções de Juíz Social em audiência de casos de roubo; almoçar fora num restaurante, troca de uma peça de roupa para bébé e explicar o que é um sabonete numa loja de produtos de cosmética.
4º dia (terça) - Função de Juiz Social (julgamento e fase de diálogo sobre decisão), almoço, cumprimentar pessoas e ser abordado por duas raparigas a fazer campanha para a Unicef.
5º dia (quarta) - Reuniao online de arranque de um novo grupo, com pessoas de outros países
6º dia (quinta) - Reunião online de trabalho, Ida a Segurança Social e a Registo Notarial para fazer pedido de cartão de cidadão, com bébé e usufruindo de prioridade
7º dia (sexta) - Recepção de um casal de amigos em casa
8º dia (sábado) - Recepção dos “sogros” em casa
9º dia (domingo) - Almoço com família, ida a praia
10º dia (segunda) - Lanchar e fazer compras no café da cooperativa

Algumas aprendizagens relevantes

Extrapolações

  • Muito do que se diz parece ser em modo reativo e intuitivo (i.e. o tempo de resposta é abaixo dos 2 a 3 segundos)
  • Muitas vezes as pessoas falam para serem ouvidas.
  • Se não falares, os outros sentem resistência a comunicar contigo
  • Falar não tem que ver sempre com acrescentar valor intelectual aos outros.
  • As pessoas não têm normalmente, percepção da sua linguagem corporal (reforço esta afirmação pela informação no livro “Linguagem Corporal”)
  • Para as crianças, emitir sons É falar.
  • É mais fácil as pessoas não perceberem que não estás a ouvir o que dizem
  • Não falar é útil para a assertividade -> Escreve-se antes em papéis respostas possíveis para as perguntas previsíveis, e só se mostra se as perguntas surgirem !

Observações e opiniões

  • Senti-me mais à vontade para tocar em algumas pessoas (abraçar, mão nas costas, massajar)

  • Eu tenho dificuldade a expressar-me sem falar. (Faz-me pensar que o teatro, contacto de improvisação podem ser atividades interessantes a praticar)

  • Muito do que digo, não preciso de dizer.

  • Em algumas situações, auto-censurei-me por estar a fazer a experiência (achando que os outros me poderiam recriminar/julgar pela mesma)

  • Não falar:

    • torna mais difícil satisfazer um lado curioso sobre as vivências dos outros
    • em alguns dias foi cansativo
    • Permitiu maior presença mental
  • No décimo primeiro dia, sentia ao falar como que um “arranhar” das cordas vocais, falando semi-rouco.

  • Ao tentar comunicar com gestos por alguém, é útil estabelecer alguns “meta-gestos” (p.ex. agora é literal, gesto para se dizer que se vai tentar dizer uma palavra através de uma situação ilustrativa)

  • Escrever tudo dá muito trabalho e demora mais tempo que falar

  • Há pessoas que falam várias vezes sobre o passado e sobre a vida dos outros.

  • Os rituais orais de acolhimento e despedida são relevantes para o reforço das relações humanas

  • Bip bip não é falar e é muito útil para pedir para pessoas à tua frente e de costas para ti darem espaço no passeio para passar.

  • Comunicar apenas com gestos e sem uma base prévia de atendimento pode ser frustrante e também muito divertido.

  • Visual Thinking é uma competência útil quando não se fala. (e eu tenho muito que aprender ainda :slight_smile: )

  • Existe uma escola de língua gestual portuguesa online

  • Pronunciar o “à” e o “ó” é uma questão de abrir ou fechar mais a boca, com o mesmo estímulo das cordas vocais.

Reacções das pessoas à experiência

  • Algumas pessoas mostraram interesse nos resultados da experiência
  • Algumas pessoas quiseram saber o porquê
  • Algumas pessoas sentiram-se inibidas e preferiram falar entre elas do que tentar falar comigo
  • Há pessoas que revelam empatia grande com pessoas “aparentemente mudas”.
  • Quando não disse que estava a fazer uma experiência, as pessoas assumiram que eu era mudo (eu apontava para a garganta).
  • Há pessoas que interagiram comigo como se eu fosse surdo (repetindo o que estavam a dizer, e escrevendo em papéis - como eu fazia)
  • Algumas pessoas pareceram ficar desconfortáveis quando lhes fiz perguntas por escrito
  • Algumas pessoas próximas tiveram dificuldade em compreender e aceitar a experiência.
  • Há pessoas que podem ficar zangadas por fazeres a experiência, e algumas podem ficar menos zangadas se receberem uma massagem
  • Algumas crianças acharam divertido e vieram interagir comigo várias vezes, depois de saberem que estava a fazer uma experiência de não falar.

Momentos em que falei durante os 10 dias

Intervalo Justificado

  • Quando estava a conduzir, no primeiro dia da experiência, e tinha a minha companheira no banco de trás inquieto e preocupada com a segurança, porque eu estava a olhar para o gps do telemóvel, e eu tinha vontade de “sossegar o ambiente”.

Momentos Oops

  • Quando estava cansado - (2 vezes ao final do dia, no 3º e 4º dias acho) - descai-me e respondi a algo que me perguntaram.
  • Quando estava triste e num contexto público, tive necessidade de partilhar que “me estava a sentir mal” com uma pessoa da família.
  • Quando estava a dormir uma noite respondi a algo que me foi perguntado.

A minha avaliação da experiẽncia

No geral acho que foi positiva, na medida em que foi algo que partiu de mim, sem uma proposta direta de alguém do exterior e sem eu conhecer alguém que tivesse feito algo assim, e me permitiu observar e explorar novas realidades, desafiando também a cultura dominante existente no que toca às relações sociais.

Foi algo que me permitiu ligar ao meu poder interior e a qualificar em 3 palavras/expressões diria:

  • Desafiante
  • Desconforto saudável
  • Divertida

Sobre os objetivos / critérios de avaliação (em parentesis o grau de completude dos objetivos, de 1 a 5):

  • Desenvolver a assertividade (3) (dizer o que é preciso, quando é preciso, da forma mais eficaz)

    • Várias vezes me apanhei a querer responder a algo que era dito, e a não o fazer e percebendo que boa parte das vezes não era necessário dizer nada.
    • Ao usar, principalmente nos primeiros dias, papéis com mensagens explicativas, convidei-me várias vezes a dizer o que queria dizer com poucas palavras
    • Não estou certo da evolução neste campo ao fim da experiẽncia…Já me apanhei a dizer coisas que não sentia necessárias.
  • Desenvolver a presença mental (2)

    • Durante a experiẽncia estive mais presente no dia-a-dia e atento ao que se estava a passar
    • Por agora é cedo para avaliar fora da experiência, e já ocorreram pelo menos duas situações em que não ouvi o que me foi dito o que revela ou uma presença aquém do que gostaria ou uma dispersão mental.
  • Desenvolver a capacidade de suspensão do julgamento (3)

    • Ao não falar, não expressei o julgamento.
    • Tive no entanto situações em que me exprimi com expressões agressivas, através de gestos, o que causou algum desconforto.
    • Ainda é cedo para avaliar no panorama geral - foi cumprido na medida em que suspendi falar com sucesso, e não na medida em que suspendi comunicar sem julgamento. Enquando desenvolvimento da capacidade, diria que qualitativamente houve uma evolução, na medida em que estou mais consciente para alguns pressupostos que as pessoas usam na interação com as outras.
  • Desenvolver uma maior percepção sobre linguagem corporal (4) (minha e dos outros)

    • Claramente tomei atenção à linguagem corporal. É dificil perceber a influência do ato de não falar nas várias experiẽncias, pois como estou a ler o livro Linguagem Corporal, e tenho continuado as observações, nada me prova que não falar contribui para esta maior percepção. Contudo, é certo que expressar por gestos levou-me a estar mais consciente dos mesmos.
  • Ligar-me mais aos meus sentimentos e emoções (4)

    • Vejo este objetivo como alcançado, na medida em que me permiti a refletir sobre as várias situações e mais facilmente identifiquei sentimentos e emoções. Não sei contudo se houve alguma “evolução” nesta área em mim.

Diria que no geral, aprendi mais sobre mim mesmo e sobre a minha relação com os outros e com a sociedade, bem como sobre alguns pressupostos socio-culturais existentes.

Quantitativamente falando e apenas para dar um número ao leitor que vẽ vantagens nisso, e face a estes 5 critérios, numa escala de 1 a 5, o resultado foi de 16/25 = 64%.

Portanto -> nota positiva e ainda com muito trabalho a fazer no que refere aos vários objetivos propostos!